A LITERATURA ROMENA EM PORTUGAL: REFLEXÕES E PERSPETIVAS

A LITERATURA ROMENA EM PORTUGAL REFLEXoES E PERSPETIVAS

A LITERATURA ROMENA EM PORTUGAL: REFLEXÕES E PERSPETIVAS

FERNANDO COUTO E SANTOS


Intervenção no colóquio 70 Anos de Língua Romena na Universidade de Lisboa: Continuidade na Discontinuidade

II Jornada da Língua Romena na FLUL


(ANFITEATRO III DA FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA - MAIO DE 2013)


Muito se tem glosado sobre a dificuldade de verter um texto para outra língua. É conhecida a velha máxima dotraduttore traditore e já no século XVI o poeta francês Du Bellay na sua obraDéfense et illustration de la langue française escrevia: «Mais que dirai-je d’aucuns, vraiment mieux dignes d’être appeléstraditeurs que traducteurs? vu qu’ils trahissent ceux qu’ils entreprennent d´exposer, les frustrant de leur gloire » (1), insurgindo-se assim contra os que não possuiriam nem a arte nem o engenho para traduzir cabalmente os textos que se propunham enaltecer e de certa forma promover.

Talvez a frase de Du Bellay seja algo injusta, pois o trabalho de tradutor, mormente do tradutor de uma obra literária que é o assunto que nos move nesta alocução, é deveras complicado e ingrato, pois a sua importância e o seu papel fundamental na divulgação de qualquer obra de cunho literário raramente são reconhecidos. Remetida amiúde para as margens da literatura, vista como uma tarefa menor, a tradução quase não tem direito de cidade. Louvemos os editores que têm o bom senso, a cortesia ou quiçá a pura intuição de colocar o nome do tradutor em lugar de destaque no livro, por vezes inclusive na sua capa. Contudo, ninguém se reclama propriamente da tradução. Se para muitos escritores a sua pátria é a língua em que escrevem - como afirmaram em tempos Fernando Pessoa em relação ao português, Thomas Mann referindo-se ao alemão e Nichita Stanescu ao romeno -, se para outros é a infância, a linguagem como para Jorge Semprún, escritor bilingue (francês e espanhol) ou simplesmente a literatura, ninguém diria porventura «a minha pátria é a tradução» e no entanto a tradução é talvez um difícil equilíbrio entre a fidelidade ao texto original e uma recriação inevitável face à especificidade de cada língua. Goethe dizia, já na fase crepuscular da sua vida, que as suas obras, uma vez escritas, se lhe tornavam estranhas e acontecia, não raro, ler com um exímio prazer um texto francês, descobrindo ideias interessantes e maravilhando-se por as considerar afins ao seu modo de sentir, antes de se dar conta, no final, que se tratava da tradução de uma obra sua. A tradução é pois um trabalho que requer um cuidado extremo, um profissionalismo sem mácula e, porque não dizê-lo, um indiscutível talento.

Interrogar-se-ão alguns, presentes na sala: o que terá tudo isto a ver com a literatura romena em Portugal? A um tempo, nada e tudo. Se como afirma o ensaísta italiano Roberto Calasso, «o escrito tem uma vida autónoma que o seu autor desconhece», a tarefa do tradutor consiste em fazer com que essa autonomia seja, na tradução, não apenas a transposição de uma língua para outra, mas também um diálogo aberto entre línguas, embora sempre fiéis às suas idiossincrasias. O tradutor deve ser não só um profundo conhecedor da sua língua materna, mas também conhecer na perfeição a língua da qual traduz um determinado livro. Conhecer significa não apenas dominar a sintaxe, a morfologia, a semântica, mas igualmente os seus referentes culturais, a História, a vivência e o quotidiano de um país ou países.

Nas relações culturais entre Portugal e a Roménia, ninguém terá ilusões que Portugal é mais importante para a Roménia do que o inverso. O desconhecimento do cidadão português médio - e mesmo de algumas elites - em relação à Roménia é aliás assaz profundo, a despeito da relevância da comunidade romena em Portugal, constituída (números oficiais que podem não traduzir fielmente a realidade) por cerca de mais de trinta mil cidadãos aos quais poderíamos acrescer o número igualmente significativo de Moldavos, de língua e cultura romenas. A situação geográfica da Roménia – rodeada de países eslavos, quando sentimental e linguisticamente está indiscutivelmente mais próxima do mundo latino - leva-a a tentar colmatar essa suposta brecha com uma dedicação e admiração ímpares pelas culturas de Itália, Espanha, Portugal e obviamente de França.

As relações culturais entre Portugal e a Roménia – sobretudo a partir do século XX, objeto da nossa análise - foram quiçá condicionadas não raro pela conjuntura política dos respetivos países e da Europa. Nos anos trinta, ambos viveram sob a alçada de regimes nacionalistas e autoritários, de inspiração fascista, com algumas semelhanças na sua conceção do poder, mas também algumas diferenças. Durante três décadas, foram ditaduras de sinal contrário que os distinguiram, até que em meados dos anos setenta em Portugal e no final dos anos oitenta na Roménia, os países abraçaram a via democrática até se encontrarem juntos, já no século XXI, na mesma comunidade de nações que dá pelo nome de União Europeia.

Apesar de limitações e de contingências várias, a literatura romena pôde ser conhecida em Portugal, em traduções do romeno e também do francês, pois não esqueçamos que foram inúmeros os escritores romenos que, a um dado momento das suas vidas, escolheram o francês como língua literária, desde Panaït Istrati a Emil Cioran, de Tristan Tzara a Eugène Ionesco, passando por Benjamin Fondane, Vintila Horia, Ghérasim Luca e o próprio Mircea Eliade, que apesar de nunca ter abandonado o romeno, escreveu alguns livros, sobretudo ensaios, em francês (e posteriormente também em inglês).

Mircea Eliade, um dos nomes cimeiros da literatura romena da pretérita centúria, foi justamente um dos mais popularizados em Portugal e seguramente um dos escritores romenos mais conhecidos ainda hoje em terras lusas. Vários dos seus livros foram traduzidos em português, mormente os que se prendem com os seus estudos sobre a história e a filosofia das religiões, área em que se especializou e se tornou uma das referências a nível mundial. Livros como Aspetos do mito,Tratado da história das Religiões,O sagrado e o profano e O mitodo eterno retorno tiveram repercussão em toda a parte e também em Portugal. Contudo, a sua obra de ficção, importante e imaginativa, com incursões no género fantástico – aluda-se a romances como Retorno do Paraíso, Maitrey - a noite bengali, Uma segunda juventude ou Isabel e as águas do Diabo, entre outros -muito embora abundantemente traduzida, é menos comentada e avaliada. No entanto, Mircea Eliade é também conhecido do público português por ter exercido funções diplomáticas como adido cultural e de imprensa da embaixada da Roménia em Portugal, entre 1941 e 1944. Desse período, ficam para a posteridade dois livros que não só revelam a inegável estatura intelectual - apesar de à época Mircea Eliade, nascido em 1907, ser relativamente jovem e não ter ainda atingido a projeção que viria a alcançar uns anos mais tarde -, mas igualmente - e aqui tocamos na ferida, o ponto mais polémico da sua biografia - o seu fascínio por movimentos nacionalistas e autoritários de extrema-direita. Esses dois livros são Diário Português e Salazar e a Revolução em Portugal, que só muito recentemente foram traduzidos para português. O primeiro em 2008, pela mão da editora Guerra e Paz, com tradução de Corneliu Popa e um estudo introdutório de Sorin Alexandrescu (sobrinho do autor), e o segundo em 2011, com a chancela da Esfera do Caos (e apoio do Clepul da Faculdade de Letras de Lisboa, do Instituto Cultural Romeno e da Fundação para a Ciência e Tecnologia) e traduzido por Anca Milu Vaidesegan, com um estudo introdutório de Carlos Leone, José Eduardo Franco e Rosa Fina. Mircea Eliade teria pensado escrever um outro livro que até já teria título –Camões -Ensaio sobre filosofia da cultura. Esse livro nunca chegou contudo a ser publicado.

Em Diário Português (1941-1945), Mircea Eliade – que às vezes se mostra crítico, embora não hostil, em relação a Portugal, país que considera periférico, um pouco à margem da história e da cultura - regista os seus anseios, angústias (a que não falta a natural referência à morte de sua primeira mulher Nina Mares), devaneios e desabafos, mas também o desenrolar da segunda guerra mundial, as suas leituras, reflexões e os contactos com a intelectualidade lusa e internacional (por exemplo, Ortega y Gasset e Carl Schmitt). Na entrada de 27 de janeiro de 1944 (página 150), escreve uma nota simpática sobre Miguel Torga, seu coetâneo, pois nasceram exatamente no mesmo ano, em quem reconhece uma certa afinidade: «NoDiário de Miguel Torga, o médico e inteligente escritor de Coimbra, descubro a mesma problemática da validade e do ecumenismo da criação em Portugal e em língua portuguesa, que nós levantamos (sobretudo Cioran e eu) quanto às «hipóteses» de criar universalmente na Roménia e na língua romena». Contudo, mais adiante, em registo de 24 de junho do mesmo ano (página 160), após reflexões sobre o escritor francês Léon Bloy e alguma analogia com Soren Kierkegaard, Mircea Eliade manifesta alguma deceção com a opus magnum de Vitorino Nemésio: «Mau Tempo no Canal, o romance que Vitorino Nemésio me envia com uma agradável dedicatória (« núncio da latinidade oriental») tem quase quinhentas páginas, densas, em corpo 8. Leio-o com interesse – porque a ação se passa nos Açores -, mas desiludido, sobretudo para o fim, porque não é o romance português que eu sonhava e esperava».

Em Salazare a revolução em Portugal, Mircea Eliade revela o fascínio que nele exerceram a figura, o ideário e o estilo de governação do ditador português António de Oliveira Salazar e de como os alicerces do Estado Novo poderiam servir de inspiração ao general Ion Antonescu para a criação na Roménia de um Estado autoritário, ainda que não totalitário. Mircea Eliade narra os acontecimentos mais marcantes da História de Portugal, com particular incidência no período compreendido entre o consulado pombalino e a Primeira República, ou nas palavras do autor «a balbúrdia sanguinolenta».

Ainda hoje, vinte e sete anos após a sua morte, alguns aspetos da biografia de Mircea Eliade provocam, consoante os casos, ora desconforto ora acesas paixões. Os seus detratores não esquecem que, contrariamente a Cioran, Eliade nunca abjurou o seu incómodo passado e a sua ligação nos anos trinta, inspirado pelo intelectual Nae Ionescu de quem foi aluno e depois assistente na Universidade de Bucareste, à Guarda de Ferro da Legião do Arcanjo Miguel, movimento autoritário, nacionalista e anti-semita. Em contrapartida, os nacionalistas ainda hoje o elegem naturalmente como uma das suas referências. Seja como for, já o escrevemos noutra ocasião, as suas posições políticas não poderão de forma alguma pôr em causa a qualidade da sua obra, uma das mais luminosas, quer pela sua imaginação, quer pela sua erudição, da literatura romena do século XX.

Com uma ligação também importante à cultura portuguesa, registe-se o caso de Lucian Blaga embaixador da Roménia em Portugal entre 1938 e 1939.Apesar de ter sido um eminente diplomata e tributário de uma cultura cosmopolita, tendo-se doutorado em Viena com a tese Kultur und Erketnnis (Cultura e Conhecimento), Lucian Blaga manifesta na sua obra -tanto poética quanto filosófica ou dramatúrgica – preocupações de índole mais espiritual e bucólica. Um dos seus ensaios mais significativos intitula-se Spatiul mioritic (O espaço miorítico) em que desenvolve a ideia que deu nome à obra e que remete para o espaço geográfico, espiritual e mítico dos romenos, inspirado pela balada rural de Mioritza. Não obstante a sua passagem por Portugal e a sua relevância no panorama das letras romenas do século XX, a sua obra foi estranhamente pouco traduzida em Portugal, resumindo-se à antologia de poemas As Cortesda Saudade, com tradução da professora Micaela Ghitescu- uma das mais destacadas conhecedoras romenas da língua portuguesa e das literaturas lusófonas -e publicada pela editora Minerva, de Coimbra, em 1999. Lucian Blaga viria a falecer em 1961, impedido de publicar e arrastado às gemónias pelo regime comunista romeno que terá promovido uma campanha de desacreditação do autor junto da Academia Sueca, perante a possibilidade da atribuição ao mesmo do Prémio Nobel em 1956, ano em que o laureado seria o escritor espanhol Juan Ramón Jiménez.

Na época em que Lucian Blaga começou a publicar as suas obras, o nome cimeiro da literatura romena seria porventura o do romancista Liviu Rebreanu, considerado como fundador do romance moderno na Roménia. A celebridade de Liviu Rebreanu ultrapassou as fronteiras da Roménia e chegou também a Portugal, quiçá algo tardiamente, pois duas das suas obras mais emblemáticas –João (Ion, no original romeno) e Ciuleandra- a dança do amor e da morte - foram publicadas apenas em 1940 e 1943, respetivamente -pouco tempo antes da morte do autor, em 1944 - a última traduzida, para a editora Gleba, por António Eduardo Lobo Vilela, engenheiro geógrafo, matemático, escritor, pedagogo, espiritualista e político português particularmente ativo na luta contra o salazarismo, o que lhe viria a cercear qualquer possibilidade de vida profissional independente, tendo sobrevivido como tradutor, explicador de matemática e colaborador da imprensa escrita.

Em determinado momento, tiveram algum sucesso em Portugal as traduções de obras de Panaït Istrati, escritor romeno de origem muito modesta que nasceu e cresceu na cidade portuária de Braila, banhada pelo Danúbio. Filho de uma lavadeira romena que adorava e de um contrabandista grego que não chegou a conhecer, Panaït Istrati foi, como lhe chamámos em tempos numa palestra promovida pelo Instituto Cultural Romeno, um vagabundo cosmopolita. Das suas errâncias pelo mundo fez a matéria dos seus admiráveis romances e contos, de uma riqueza pictórica ímpar. Aprendeu francês lendo durante anos a fio os seus mais destacados autores clássicos e faria da língua de Voltaire o seu principal instrumento de criação literária. A sua carreira foi apadrinhada por Romain Rolland que o descobriu após uma tentativa de suicídio quando Panaït Istrati, desesperado, era fotógrafo ambulante em Nice, no sul de França. Porém, Panaït Istrati cairia em desgraça após uma viagem à União Soviética, de 1927 a 1929, na companhia do escritor grego Nikos Kazantzakis. Deste seu périplo, Panaït Istrati, um entusiasta do movimento comunista internacional, escreveu um livro Vers l´autreflamme (Em direção à outra chama), com o subtítulo Confession pour vaincus (confissão para vencidos) - para o qual contou com colaboração e sugestões de Victor Serge e Boris Souvarine- em que relata a sua experiência e o seu desencanto por ver o seu ideal desfigurado pela burocracia e pelos desmandos de Josef Estaline. Abandonado pelos seus amigos mais próximos e atacado por muitos que o acoimaram de traidor (foram particularmente virulentas as críticas de Henri Barbusse), Panaït Istrati morreu tuberculoso em Bucareste em 1935, um ano antes da publicação do Retour de l´Urss (Regresso da Urss) em que André Gide rompeu espetacularmente com o movimento comunista internacional após uma visita à União Soviética, juntamente com outros intelectuais franceses como Eugène Dabit (que veio a falecer durante a visita), Louis Guilloux, Pierre Herbart, Jef Last e Jacques Schiffrin. Curiosamente, saiu em França há menos de três meses um livro, um autêntico documento, escrito em 1935 por Elena-Samios Kazantzaki, companheira de Nikos Kazantzakis e só agora publicado no original francês pelas edições Lignes-Imec (houve curiosamente uma tradução espanhola dada à estampa em 1938 pela editora chilena Ercilla, da autoria de Luis Alberto Sánchez Sánchez)(2), intitulado Lavéritable tragédie de Panaït Istrati (A verdadeira tragédia de Panaït Istrati), que conta as tribulações de um grupo de amigos naquela viagem à União Soviética e a injustiça cometida para com Panaït Istrati. Tsatsa Minnka, A casa Thuringer, Os cardos do Baragan e Kyra Kiralina são algumas das obras de Panaït Istrati publicadas entre nós, as duas primeiras traduzidas nos anos quarenta por José Barão e Rogério Claro, respetivamente, para a editorial Minerva. As duas outras obras conheceram mais do que uma edição: Kyra Kiralina, com uma primeira edição de 1943 (Livraria Latina, Porto) com tradução do escritor e resistente antifascista Alexandre Babo e a segunda em 1986, pela mão da editora Relógio de Água e com tradução de Aníbal Fernandes;Os Cardos do Baragan, com uma primeira edição de 1946, traduzida por António de Carvalho, para a editorial Gleba (coleção Romances célebres), a segunda em 1959, publicada pela editora Livros do Brasil, e a terceira em 2010, com a chancela da Assírio e Alvim, com tradução e apresentação (brilhante, aliás) de Aníbal Fernandes. Lamentavelmente, esta última é a única edição recente de obras deste autor. Acresce a existência de textos de Panaït Istrati numa antologia do conto moderno, dada à estampa em 1961 pela editora Atlântida de Coimbra e com traduções de Natércia Caramalho e Alexandre Babo.

O francês foi igualmente a língua literária, a partir de um certo momento, de dois outros escritores romenos de referência, os de maior projeção, a par de Mircea Eliade, da literatura romena do século XX: Eugène Ionesco e Emil Cioran. A ventura de se terem radicado em França foi determinante para a sua afirmação internacional.

Eugène Ionesco, dramaturgo do absurdo, da solidão do ser humano e da insignificância da sua existência, é sobejamente conhecido e admirado em Portugal e as suas peças principais –Le roise meurt (O rei está a morrer), La cantatrice chauve (A cantora careca), La leçon (A lição) ou Rhinocéros (Rinoceronte) - estão traduzidas e algumas já foram representadas em Portugal. Em 2010, por exemplo, no âmbito, de certa forma, das comemorações do centenário do seu nascimento, assinalado em 2009, o grupo A Comuna representou no Teatro com o mesmo nome, em Lisboa, numa brilhante encenação de João Mota, a peça Le roi se meurt (O rei está a morrer).  Contudo, antes de se te ter tornado num conceituado dramaturgo, Eugène Ionesco foi, na sua juventude, nos turbulentos anos trinta e escrevendo ainda em romeno, um crítico literário particularmente irreverente. Essas recensões, reunidas no volume Nu (Não), foram traduzidas em francês em meados dos anos oitenta. Foi, aliás, destarte que as descobrimos. Confessamos aqui que alimentámos a secreta esperança que, à boleia – se nos é permitido empregar aqui expressão tão coloquial - do centenário do seu nascimento, perpassasse pela mente de algum editor do nosso burgo a leve tentação de traduzir para português essa obra. Talvez estivéssemos a pedir muito, o interesse comercial dessa eventual publicação seria porventura muito limitado para o exíguo mercado editorial português.

Emil Cioran, o filósofo da alienação, da decadência e da tirania da história, que a propósito do seu entusiasmo dos anos trinta pelo ideário fascista e anti-semita -que ulteriormente renegaria - afirmou um dia ser como aquelas mulheres de quem se diz terem um passado, suscitou algum interesse em Portugal, embora o número de obras suas traduzidas não seja particularmente significativo:A tentação de existir (Relógio de Água, 1988);História e Utopia (Bertrand, 1994);Silogismos da amargura (Letra Livre, 2009) e Do Inconveniente de ternascido (Letra Livre, 2010). Acresce que em Portugal foi publicada em 2006 pela editora Campo das Letras (coleção Zetesis, dirigida então por Fernando Gil) uma notável obra crítica sobre Cioran, do professor e investigador João Maurício Brás, intitulada O pensamento insuportável de Emil Cioran. Quanto ao mundo lusófono, o entusiasmo por Cioran tem sido crescente no Brasil onde têm aumentado as traduções e onde existem blogues na Net dedicados à sua obra.

Ao longo de várias décadas, outros destacados nomes da literatura romena como Mihai Eminescu, Tudor Arghezi, Mihail Sadoveanu, Camil Petrescu, Ion Luca Caragiale, Cezar Petrescu, Vintila Horia e Virgil Gheorghiu (e o seu célebre romance Vigésima-quinta hora) foram divulgados em Portugal, embora nem sempre em obras editadas, em alguns casos essa divulgação ocorreu apenas em revistas literárias e universitárias. Seja como for, é de louvar o trabalho de todos os que contribuíram para essa divulgação, e permitimo-nos destacar o papel fulcral, entre vários outros, dos professores doutores Victor Buescu e Maria Leonor Carvalhão Buescu e mais recentemente da professora doutora Helena Carvalhão Buescu.

Hodiernamente, a promoção da literatura romena em Portugal tem conhecido algum incremento com traduções de obras de um clássico como Mihai Eminescu, mas também de escritores atuais como Norman Manea, Ana Blandiana, Gabriela Adamesteanu, Mircea Cartarescu, Dinu Flamand, Dumitru Tsepeneag e alguns outros. Louve-se o trabalho de tradução empreendido por Micaela Ghitescu, Anca Milu Vaidesegan ou Corneliu Popa já citados anteriormente, mas igualmente de Maria João Coutinho e Simion Doru Cristea, Daniel Perdigão, Teresa Leitão, Mónica Cozacenco, Doina Zugravescu, entre outros. Obviamente, a inauguração do Instituto Cultural Romeno em Portugal, em 2007 e o dinamismo das suas atividades sob a orientação do seu diretor e da sua diretor adjunta, Virgil Mihaiu e Anca-Milu Vaidesegan que regressaram recentemente à Roménia, foi determinante para uma maior visibilidade da cultura romena entre nós, inclusive com a divulgação em Portugal de traduções para português de originais romenos pela editora brasileira Thesaurus como foi, por exemplo, o caso de dois romances do escritor e antigo embaixador romeno em Portugal e no Brasil Mihai Zamfir, Uma casa dois mundos (tradução de Anca Ferro) e Lisboa para sempre (tradução de Carolina Martins Ferreira), que tivemos o grato prazer de apresentar, em março do ano passado, com a presença do autor.

No âmbito desta nossa intervenção há também lugar a uma referência a Hertha Müller, prémio Nobel da Literatura em 2009, que, embora seja uma escritora de língua alemã (oriunda da minoria linguística do Banat), nasceu e viveu na Roménia até aos anos oitenta.

Apesar de notáveis progressos nos últimos anos, muito há ainda por fazer para sensibilizar alguns editores portugueses sobre a importância da literatura romena. Em abril passado, os Institutos Culturais Romenos no estrangeiro promoveram iniciativas evocando o supracitado poeta Nichita Stanescu, por ocasião dos trinta anos da sua morte e dos oitenta do seu nascimento. Nichita Stanescu, muito popular na Roménia onde é considerado um dos maiores de sempre, cujo nome chegou a ser ventilado como possível candidato ao Prémio Nobel, não tem edição de obras suas em português. Todas as traduções disponíveis deste grande poeta encontram-se apenas em portais na Internet mercê do empenho de três tradutores brasileiros: João Monteiro, Daniel Falkenbach Ribeiro e Caetano Waldrigues Galindo.

Não deixa de causar igualmente alguma estranheza que o trabalho incansável de divulgação das literaturas portuguesa e brasileira, desenvolvido pelo ensaísta Marian Papahagi (falecido prematuramente em 1999, com apenas cinquenta anos) - que foi aluno do poeta brasileiro Murilo Mendes em Itália, privou com Luciana Stegagno Picchio e estabeleceu contactos com Jorge de Sena - não seja suficiente para a tradução dos seus ensaios, nem mesmo depois da realização em 2009, em Lisboa, de um colóquio organizado pelo Instituto Cultural Romeno, o Instituto Italiano de Cultura e a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Poderíamos citar ainda os nomes de outros destacados escritores romenos do século XX cujas obras estão muito pouco ou nada traduzidas em Portugal como George Bacovia, Ion Barbu, Benjamin Fundoiannu (que depois da sua partida para Paris afrancesou o nome para Benjamin Fondane), Max Blecher, Mihail Sebastian, Constantin Noica, Daniel Turcea, Ghérasim Luca ou Marin Sorescu. O século XXI vê despontarem novos talentos na literatura romena, alguns dos quais marcaram presença em março, no último Salão do Livro de Paris (apesar da polémica que rodeou o acontecimento), novos talentos - uns mais jovens do que outros e um ou outro nascido na Moldávia -como Radu Aldulescu, Savatie Bastovoi, Florina Ilis, Gabriel Liiceanu (este, um nome já consagrado, nascido em 1942, mas só agora verdadeiramente conhecido extramuros), Dan Lungu, Razvan Radulescu, Lucian Dan Teodorovici, ou Marius Daniel Popescu (que escreve em francês e vive na Suíça). Deseja-se que a tradução destes autores em francês leve os editores portugueses a seguirem o mesmo caminho.

É voz corrente que nos pequenos países o interesse pelas culturas e línguas estrangeiras é não raro superior ao dos grandes países, normalmente mais egocêntricos e menos sensíveis às culturas alheias. Na Roménia, parece que continua sendo assim. O interesse crescente e natural pela língua inglesa não faz necessariamente esmorecer o entusiasmo pelo domínio de outras línguas, mormente as novilatinas, como o francês, o espanhol, o italiano ou o português. Em Portugal, esse interesse, quando acontece, é amiúde por imperiosas exigências de caráter laboral, como a necessidade de exercer a sua profissão no estrangeiro devido à crise que por este país grassa. Expendemos estas considerações para chegar a uma interrogação: será que os Portugueses se interessam verdadeiramente pelas culturas estrangeiras ou apenas por aquelas dos países mais importantes e sobretudo daquele supostamente mais importante, como se as outras não existissem?

Pensamos que, neste capítulo, temos, nós Portugueses, algo a aprender com os Romenos. Seja como for, seria útil que estes dois países – Portugal e Roménia –, situado cada um num dos extremos deste velho continente que é a Europa, encetassem um profundo diálogo entre as suas culturas, diálogo seguramente frutuoso e em que, quiçá, descobririam entre si estranhas, insuspeitas e deliciosas afinidades…


  1. «Que direi de alguns verdadeiramente mais dignos de serem chamados traidores que tradutores? Uma vez que traem aqueles que se propõem promover, frustrando-os da sua glória».

  2. Luis Alberto Sánchez Sánchez (1900-1994), diretor da referida editorial era um exilado político peruano que viria a ser décadas mais tarde, entre 1985 e 1990, vice –-presidente do Peru na presidência de Alan Garcia. Eleni -Samios Kazantzaki faleceu em 2004 com 101 anos.